Pegar o livro. Abrir o livro. Ler. Pensar: “Nossa, como isso é
profundo!”. Fechar o livro. Guardar o livro. Se afastar do livro.
Esquecê-lo por algum tempo… Retomar o processo.
Essa
tem sido a rotina de leitura bíblica de muitos cristãos. Simplesmente
indiferente ao conteúdo das Escrituras. Recorrem à ela como um manual de
como viver a vida, ou um livro de autoajuda que apenas serve para
“fazer com que eu me sinta melhor”. Pior ainda, vão as Escrituras como
ela fosse um grimório onde se encontram porções mágicas para ser feliz,
ou ser bem-sucedido. Para conseguir um relacionamento, e coisas do
gênero.
A Escritura é a palavra de Deus. Ela mesma dá testemunho de si como autoridade e meio pelo qual o
homem
deve guiar seu caminho: “Toda a Escritura é inspirada por deus e útil
para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na
justiça”. 2 Timóteo 3:16. Este texto fala claramente da
instrumentalidade das Escrituras Sagradas, como palavra de Deus
inspirada.
O termo “inspirada” (θεόπνευστος) significa literalmente “soprada, ou
aspirada por Deus” indicando sua procedência. Todavia esse texto está se
referindo a todo o Escrito do antigo testamento. Como pois poderíamos
atestar a inspiração do novo testamento? O próprio NT também oferece
testemunho quanto à sua autoridade. Em sua primeira carta à igreja de
Tessalônica,
Paulo dá graças porque eles receberam seus escritos “não como simples ensino de homens, mas sim como, em verdade é,
a Palavra de Deus”. 1 Tessalonicenses 2:14 KJV.
Pedro em sua segunda carta diz: “Ele [Paulo] escreve do mesmo modo em
todas as suas epístolas, discorrendo nelas sobre esses assuntos, na
quais existem trechos difíceis de entender, os quais são distorcidos
pelos ignorantes e insensatos, como fazem também com as
demais
Escrituras para a própria destruição deles. 2 Pedro 3:16 KJV. O apóstolo
coloca os escritos de Paulo no mesmo nível das Escrituras do antigo
testamento. Vale lembrar que Pedro era um judeu, que tinha alto apreço
pela Palavra do Senhor, logo, estamos diante do comentário de alguém
bastante criterioso no que tange a discernir o conteúdo inspirado das
Escrituras, além de ser também um apóstolo que está sendo usado para
lançar os fundamentos da fé.
Tudo
isso nos remete a entender que a Bíblia que temos em mãos, é sem dúvida,
a Palavra do nosso Deus. O puritano Thomas Watson afirmou que: “Em cada
linha que você lê, imagine Deus falando com você”[1]. Ler as páginas
sagradas deve nos levar à um alto apreço para com Deus e principalmente,
em considerar seus mandamentos e princípios abordados nas Escrituras.
Todavia
há alguns aspectos quanto a Palavra de Deus que devem ser compreendidos
para que possamos ter uma melhor compreensão sobre ela.
A Bíblia é um livro humano
Há
três correntes de pensamento quanto a inspiração do Texto Sagrado;
aqueles que afirmam que ela foi inspirada mecanicamente, dinamicamente e
organicamente. Essas três linhas de raciocínio discutem sobre como o
processo de revelação aconteceu.
Deus é um ser infinito. Nós,
finitos. Logo a distância entre Deus e nós, por si só, dificulta a
comunicação entre as partes. Todavia, como afirma Calvino[2]: “Todo
verdadeiro conhecimento de Deus decorre do fato de que Deus, em sua
misericórdia, houve por bem revelar-se”. Isso é o que chamamos de
doutrina da acomodação, onde Deus em sua infinita grandeza, se acomoda a
linguagem limitada humana, com o fim de manter contato com sua
criatura. A confissão de Fé de Westminster, a falando sobre o pacto de
Deus com o homem, lança luz sobre essa questão, quando afirma: “Tão
grande é a distância entre Deus e a criatura, que, embora as criaturas
racionais lhe devam obediência como ao seu Criador, nunca poderiam fruir
nada dele como bem-aventurança e recompensa, senão por alguma
voluntária condescendência da parte de Deus, a qual foi ele servido
significar por meio de um pacto”[3].
Através disso compreendemos
que, Deus se valeu em primeiro lugar de sua boa e graciosa vontade para
se revelar ao homem, e em segundo lugar, através da Escritura, que fora
escrita por homens inspirados por Deus para essa tarefa. Mas como correu
essa inspiração?
I.I Inspiração mecânica
Os adeptos dessa
corrente de pensamento, afirmam que as Escrituras foram ditadas pelo
Espirito Santo, de modo a anular a mente e a personalidade daqueles que a
registraram[4]. Aqueles que favorecem esse tipo de inspiração,
acreditam que os autores bíblicos não passaram de meros copistas,
pessoas que registraram as informações por ordem de Deus, sem ter
qualquer envolvimento com o teor da mensagem.
Todavia esse tipo de
argumentação não bate com as características encontradas nos textos
bíblicos. Percebemos ao longo de toda a Palavra de Deus, traços
peculiares aos autores de cada livro. A erudição de Paulo, os
sentimentos de João, a descrição de Esdras, e a linguagem às vezes
poética de Isaias.
II Inspiração dinâmica
Esse pensamento é
o extremo oposto ao primeiro. Os autores bíblicos tiveram completa
autonomia sobre a complicação dos escritos, sendo atribuída ao Espirito
Santo, apenas uma iluminação, no que concerne sobre ao assunto a ser
tratado. A excelência dos seus escritos deve ser atribuída à influência
santificadora no caráter, mente e palavras deles, devida à comunhão
profunda com Deus ou pela convivência com Jesus, e não a uma ação
sobrenatural e ímpar do Espírito.[5]
I.III Inspiração Orgânica
Aqui
temos a linha de pensamento defendida por grande parte dos teólogos
reformados, e que representa a interpretação mais equilibrada quanto à
inspiração dos autores bíblicos, exibida também pela própria Escritura.
Os autores bíblicos foram inspirados por Deus para escreverem a Palavra
do Senhor, de forma que tudo aquilo que o Espírito Santo tencionou
registrar para exortação do povo de Deus, quanto as verdades necessárias
para tal, foi de fato escrito, mas também as características pessoais
de cada autor como contexto histórico, cultural, educação, estilo e etc,
foram usados colaborativamente, sem que isso pusesse em risco qualquer
aspecto do processo de registro do conselho de Deus nas Santas
Escrituras.
O fato de estarmos lidando com um livro que também é
humano, porque foi escrito por homens e suas características foram
usadas durante a escrituração do mesmo, não diminui em nada sua
autoridade ou poder. Todo o processo de registro foi completamente
supervisionado pelo Espírito de Deus, que fez com que exatamente tudo o
que ele quis que fosse escrito, de fato fosse escrito, como já
argumentamos anteriormente.
Não há qualquer razão para termos
qualquer receio em receber a Bíblia como Palavra de Deus como fizeram os
Tessalonicenses, muito pelo contrário, embora seja um livro humano, a
Bíblia é o oráculo de Deus, o meio pelo qualquer ele escolheu para
revelar-se a nós, o que nos leva ao segundo ponto: A bíblia é um livro
divino.
A Bíblia é um livro divino.
Como vimos, há passagens em toda a Escritura que atestam que ela é de fato a Palavra do Senhor.
A
bíblia foi escrita por 40 autores diferentes, durante um período de
pelo menos 1500 anos. Todo o conteúdo da bíblia foi atestado e vivido
tanto pelos autores como pelo povo de Israel, e a igreja desde os
apóstolos. Cada palavra que foi escrita teve e tem peso divino sobre
nossas vidas. Um dos aspectos que apontam para o caráter divino das
Escrituras é sua harmonia. Nenhum outro livro escrito por um número tão
grande de autores, contém uma harmonia tão perfeita, capaz de transmitir
fatos, ideias e princípios de forma perfeitamente linear como faz a
Palavra do Senhor. Mais uma vez a confissão de fé de Westminster nos
ajuda a compreender a autoridade e distinção que tem a Bíblia: “Pelo
testemunho da Igreja podemos ser movidos e incitados a um alto e
reverente apreço da Escritura Sagrada; a suprema excelência do seu
conteúdo, e eficácia da sua doutrina, a majestade do seu estilo, a
harmonia de todas as suas partes, o escopo do seu todo (que é dar a Deus
toda a glória), a plena revelação que faz do único meio de salvar-se o
homem, as suas muitas outras excelências incomparáveis e completa
perfeição, são argumentos pelos quais abundantemente se evidencia ser
ela a palavra de Deus; contudo, a nossa plena persuasão e certeza da sua
infalível verdade e divina autoridade provém da operação interna do
Espírito Santo, que pela palavra e com a palavra testifica em nossos
corações”.[6]
Percebamos que não somente é apresentada a harmonia
como indicio do caráter divino das Escrituras, mas também outros
aspectos que podem com certeza nos atestar o aspecto divino do seu teor,
mas o que é apontado como sendo aquilo que de fato comunica o caráter
divino do texto sagrado, é a obra perfeita e maravilhosa do Espírito
Santo em nossos corações, revelando que a Bíblia é a palavra do Criador
para nós.
Para interpretar esse livro tão magnifico, devemos nos
esforçar e empreender árduo compromisso, com o fim de que saibamos o
direcionamento que ela nos dá para agradar e glorificar a Cristo, pois
esse é o seu objetivo. Todavia algumas dificuldades surgem como
obstáculo na hora de interpretar o Texto Sagrado.
Um exemplo disso
é o nosso distanciamento dos autores. Hoje quando queremos entender
melhor um texto, podemos procurar aquele que o escreveu para tirarmos
dúvidas quanto a algum ponto que não tenha ficado muito claro. Isso não é
possível quando se trata dos autores bíblicos, pois estão mortos, e a
2000 anos de distância no tempo de nós. Sua cultura, seu contexto
histórico (o que acontecia enquanto ele escrevia), seu idioma, tudo isso
são fatores complicadores na hora de entendermos a Escritura. Outro
fator é nossa limitação. Somos seres limitados e imperfeitos, não
conseguimos absorver todo o conhecimento, e nossa capacidade de
processamento de informações é bem resumida se levarmos em consideração,
o tanto de informações que precisamos reter. Além disso, a queda
reduziu ainda mais isso, corrompendo nossa
moral,
pervertendo nossos princípios, e complicando nossas faculdades tanto
físicas quanto mentais. Somos seres caídos, e temos resquícios do pecado
em nós, e isto milita diariamente contra aquilo que é bom e justo
diante de Deus como prescrição do que ele próprio deseja, por ser ele
mesmo bom e justo. Ou seja, não queremos nos submeter as Escrituras, não
gostamos e se formos deixados à nossa vontade pecadora, não o faremos.
Tudo
isso ergue verdadeiras muralhas, que nos atrapalham em nosso exercício
de levar nossa mente cativa à Cristo por meio da Palavra do Senhor.
Sendo assim, gostaria de concluir esse texto, lhe dando alguns conselhos
sobre como ler e como interpretar a Palavra de Cristo:
- Ore pedindo iluminação e obediência ao Espírito!
Como
dito, nosso coração pecador não quer se submeter à vontade de Cristo.
Em nós mesmos, jamais buscaremos contato com a Bíblia objetivando
agradar ao Criador. Então, ore sempre, pedindo ao Espírito que ilumine-o
a entender a Palavra de Deus, pra que através disso você possa
agradá-lo através de uma vida de santificação. Isso não será fácil, e
exigirá de você muita disciplina, o que leva ao nosso próximo ponto.
Lembre-se do salmista que confiava na Palavra de Deus como norteador da
sua vida: “Tua Palavra é lâmpada que ilumina os meus passos e luz que
clareia o meu caminho! Salmos 119:105 KJV.
- Discipline-se!
Alguns
cristãos acreditam que a leitura da Palavra de Deus deve ser algo
espontâneo, feito com liberdade, todavia, à luz do que vimos no ponto
anterior, se isso for levado de fato em consideração, jamais leremos a
Bíblia numa que não queremos. O salmista aponta que o objetivo de ele
ter escondido a Palavra do Senhor em seu coração, foi para que não
pecasse contra Deus: “Em meu coração conservei tua promessa para não
pecar contra ti” Salmos 119:11 KJV. A palavra do Senhor não foi anexada
no cérebro do salmista possibilitando sua conservação, ele teve de lê-la
muitas vezes para que isso pudesse acontecer… e conseguiu. Tanto quanto
ou mais que o salmista devemos ler a palavra do Senhor repetidas vezes.
Leia todos os dias. Muitas pessoas se queixam de não terem tempo de ler
a Escritura devido a trabalho, universidade, curso enfim, todavia o
Senhor nos chama em primeiro lugar para o servir diretamente, ou seja,
diante dele em constante oração, e servindo através de um comportamento
digno do evangelho. Isso só poderá ser alcançado, se introjetarmos a
Bíblia em nosso coração através do exercício diário e de leitura.
- Trabalhe; use livros e outros recursos!
Graças
a Deus hoje temos inúmeros recursos que podem nos ajudar a ler e
interpretar a palavra de Deus. Softwares e sites, oferecem gratuitamente
muitas ferramentas que podem nos auxiliar a ler a bíblia corretamente,
diminuindo os distanciamentos que mencionamos como fatores que complicam
nosso estudo. Sem contar a vastidão de livros escritos sobre
interpretação do texto bíblico. Compre bons livros, dicionários, atlas,
concordâncias bíblicas, que tornarão a leitura bíblica mais profunda e
sua compreensão mais expandida quanto ao que fala o Texto Sagrado. O
reformador João Calvino usa uma frase que explicita bem o trabalho de
interpretação da bíblia: “
Orare at labutare”(Ore e labute!).
Diferentemente do que muitos pensam, um anjo não descerá dos céus com um
rolo onde estará escrito a perfeita interpretação das Escrituras
Sagradas. Cabe a nós filhos de Deus, buscar entender o que fala nosso
Pai celeste em Seu Filho Jesus Cristo, por meio do Espírito Santo na sua
Palavra. Então, se empenhe em estudar a Bíblia.
Em oposição a
atitude que descrevemos no começo do texto, a leitura bíblica exige
muito mais do que aquele comportamento distante e pontual, ela requer de
nós um envolvimento muito mais íntimo e constante. Dedique tempo de
qualidade para ler a Palavra de Deus, e sem dúvidas Cristo o iluminará e
abençoará seus esforços para entender o que ele deseja de você,
iluminando-o com seu Santo Espírito. Nossa atitude para com a Bíblia
exibe diretamente qual é nossa compreensão de quem é Deus; Se temos um
alto apreço pela Escritura e nos dedicamos em lê-la, com certeza Cristo é
visto por nós com toda importância. Se somos omissos e aquém de uma
vida de constante leitura da Bíblia, Nosso Senhor talvez seja alguém
sempre colocado em segundo plano, e por isso o conhecemos tão mal.
Gospel Prime